Débora Motta

 

Mandarim-de-Lacerda: médico destaca que a herança perversa do diabetes para filhos, e até netos, trará um custo social para o Estado   A importância de uma alimentação balanceada para o funcionamento saudável do organismo não é novidade. Mas, agora, pesquisa realizada no Centro Biomédico da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) apresenta um dado que reforça a necessidade da boa nutrição: o estilo da alimentação durante a gravidez tem efeitos não só para a mãe, mas pode ser determinante para a qualidade da saúde dos filhos, durante a vida adulta, e continuar influenciando até mesmo a saúde dos netos. O trabalho, coordenado pelo professor e médico Carlos Alberto Mandarim-de-Lacerda no Laboratório de Morfometria, Metabolismo e Doença Cardiovascular da universidade, mostrou que, em roedores, uma dieta materna carente em proteínas durante a gestação prejudica a formação de determinados órgãos dos filhotes – como o pâncreas – tanto na primeira geração (filhos), como na geração seguinte (netos), levando ao desenvolvimento precoce de diabetes tipo 2.
 


   A explicação para o fenômeno, observada pela equipe do professor Mandarim-de-Lacerda, depois de oito anos de estudos, é simples. A alimentação materna com níveis insuficientes de proteínas, durante a gravidez, causa alterações estruturais no pâncreas dos filhotes ainda no útero materno. Mais especificamente, a formação das chamadas células beta do pâncreas, responsáveis pela produção de insulina, é prejudicada. “Os filhotes dessas mães e seus netos nascem com um número consideravelmente menor de células beta pancreáticas, em relação aos filhotes de mães alimentadas com um nível adequado de proteínas”, explica o professor. Para quantificar o número de células beta do pâncreas desses filhotes, os pesquisadores analisam a massa destas células nos cortes histológicos do órgão, com o uso de uma técnica chamada de estereologia, e comparam com a massa celular dos filhotes de mães normais (alimentadas com nível de proteína normal, grupo controle).
 

   Com a produção reduzida do hormônio insulina, o organismo passa a ter dificuldade para metabolizar glicose, que acaba se acumulando no sangue e provoca o diabetes – um importante fator de risco associado ao desenvolvimento de doenças cardiovasculares, de deficiências na microcirculação, da insuficiência renal e até da cegueira. Essas alterações na formação das células beta pancreáticas trazem problemas para o resto da vida do recém-nascido. “As células beta do pâncreas normalmente são formadas apenas durante a gestação. Depois do nascimento, elas não podem mais ser formadas”, esclarece.

 
   Por esse motivo, as alterações estruturais no pâncreas trazem efeitos praticamente irreversíveis, mesmo que os filhotes sejam alimentados normalmente após o nascimento até a maturidade. “Quando o indivíduo é jovem, mesmo que tenha menos células beta do que o normal, ele ainda consegue manter o equilíbrio nos níveis de glicose no sangue. Mas na medida em que, com o avanço da idade, elas vão morrendo naturalmente, o corpo não responde mais ao excesso de glicose e o indivíduo adulto apresenta diabetes tipo 2 invariavelmente mais cedo, e não apenas na terceira idade”, completa o chefe do laboratório, lembrando que o aumento da longevidade no País é um fator que vai contribuir para tornar esses efeitos mais nítidos. “Se uma criança nascer programada para ter diabetes tipo 2 aos 30 anos, ela vai chegar aos 50 com todas as complicações possíveis.”

 
Uma questão social
 

   O estudo teve como desdobramento a publicação de um artigo na conceituada revista britânica Clinical Science e será tema de outro artigo a ser publicado, ainda neste semestre, na americana Mechanisms of Ageing and Development. Para Mandarim-de-Lacerda, que é Cientista do Nosso Estado, programa símbolo da Fundação, e que vem recebendo apoio da FAPERJ ao longo dos últimos anos por meio de editais, como o Apoio a Núcleos de Excelência (Pronex) e o Apoio às Universidades Estaduais do Rio de Janeiro, os resultados da pesquisa alertam para a necessidade de formulação de políticas de saúde pública que considerem o custo social dessa herança perversa. “Como os casos de desnutrição de mulheres grávidas no Brasil ainda persistem, é preciso contabilizar o custo que o Estado terá em um futuro próximo com o tratamento das gerações descendentes dessas mães que tiveram restrição proteica na gravidez”, destaca. 

 
   O aumento dos casos de obesidade, que já é considerada uma epidemia no Brasil, inclusive nas classes sociais mais desfavorecidas, é outro fator que complica esse quadro. De acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em agosto de 2010, mais da metade da população adulta brasileira está acima do peso. “Geralmente o obeso é um desnutrido, que geralmente se alimenta com refeições hipercalóricas e come pouca proteína”, explica o professor. Por isso, a população obesa feminina poderia ser enquadrada no grupo que sofre restrição proteica, principalmente durante a gravidez, “programando” seus filhos e netos para ter complicações precoces. Se a grávida desenvolver diabetes e for hipertensa, além de ter um consumo insuficiente de proteínas, os danos ao feto se potencializam. “Do ponto de vista da gestão da saúde pública, esse problema é uma equação que não fecha”, alerta.

 

   A ideia de criar essa linha de pesquisa no Laboratório de Morfometria, Metabolismo e Doença Cardiovascular da Uerj surgiu por influência da chamada Teoria de Barker. Na década de 1980, o epidemiologista David Barker observou que a população da Holanda na faixa dos 40 anos apresentava complicações, como diabetes, hipertensão, doenças cardíacas e dislipidemia, em níveis bem superiores em relação ao restante da população europeia. Barker localizou a origem dessa disparidade na Segunda Guerra, quando as mães dessa geração com a saúde comprometida precocemente sofreram privações alimentares. “Por serem filhos de mulheres que sofreram restrição proteica durante a gestação, eles provavelmente tinham menor número de células beta no pâncreas, de cardiomiócitos no coração e de glomérulos nos rins, ou seja, estavam programados para apresentar doenças antes do normal”, justifica Mandarim-de-Lacerda. Hoje, essa teoria é um fato aceito internacionalmente, com o nome de imprinting ou programming.


Óleo de peixe: benefícios

Roedor para testes: ingestão regular de óleo de peixe por fêmeas desnutridas na gravidez pode evitar complicações transgeracionais

   Outra vertente de pesquisa em curso no laboratório é a avaliação dos efeitos da ingestão regular de óleos comestíveis, como o óleo de peixe, na saúde dos animais. Em um dos diversos trabalhos nessa linha, Mandarim-de-Lacerda e sua equipe identificaram que o consumo de óleo de peixe por filhotes de mães submetidas a uma dieta pobre em proteínas durante a gravidez foi responsável por uma melhoria considerável do metabolismo. A pesquisa foi publicada na revista científica Journal of Nutritional Biochemistry. “O estudo mostrou evidências de que a ingestão regular de óleo de peixe, rico em lipídios poli-insaturados, pode reverter as alterações no fígado e no tecido adiposo geradas pela dieta materna com restrição proteica”, afirma.

 
   Um segundo trabalho também com óleo de peixe, publicado no American Journal of Obstetrics and Gynecology, apresentou resultados animadores. Ele revelou que as fêmeas grávidas submetidas a uma dieta com restrição proteica e que, no mesmo período, ingeriram suplementos do óleo, tiveram filhotes normais. “Em relação à parte bioquímica do fígado e do tecido adiposo, esses filhotes nasceram sob as mesmas condições daqueles cujas mães receberam uma dieta equilibrada na gravidez”, relata. Sem dúvida, os experimentos com óleo de peixe apontam perspectivas positivas. Quem sabe, um dia, o consumo regular desse suplemento possa ser indicado como uma alternativa complementar para ajudar a reverter as complicações causadas pela restrição proteica durante a gestação.

 

Fonte: Faperj