Ana Carolina Clemente dos SantosAinda polêmicos, temas como clonagem e terapia gênica, que permeiam debates inflamados na comunidade científica e em outros setores da sociedade, causaram controvérsia em 1930, quando Aldous Huxley descreveu, em sua ficção científica Admirável Mundo Novo, uma sociedade tecnológica nos moldes do Fordismo, estruturada a partir de manipulações em série da vida humana.
 
Em entrevista ao blog da revista História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Ana Carolina Clemente dos Santos, uma das autoras do artigo “Ficção científica e o Admirável mundo novo: previsões concretizadas no atual século e considerações bioéticas“, publicado na última edição de HCSM, afirma que as ficções científicas atuais perderam a capacidade de fomentar a discussão sobre a ética na ciência. “As obras mais recentes abordam técnicas ou tecnologias que podemos desenvolver, mas não trazem muito a discussão ética”, atesta.
 
O artigo, escrito em conjunto com os professores Thomaz Pereira de Amorim Neto e Andréa Carla de Souza Góes, foi produto de monografia elaborada por Ana Carolina para a conclusão do curso de graduação em Biologia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). No texto, os autores questionam se as técnicas e tecnologias descritas por Huxley são viáveis no mundo contemporâneo. Para Ana Carolina, a sociedade atual está caminhando no rumo do Admirável Mundo Novo. “Praticamente todas as técnicas que o autor descreveu já existem, e estamos descobrindo coisas nas quais ele nem pensou”, diz.
 
De que forma a ficção científica pode colaborar na formação de cientistas atualmente?
Quem escolhe essa carreira deveria ler ficção científica para tentar fugir dos erros retratados nas obras. A literatura de ficção científica nos faz um alerta: existem muitas coisas que podemos fazer com os conhecimentos científicos, mas até que ponto devemos ir? Em Frankenstein, por exemplo, o objetivo do personagem era criar um ser vivo imortal, mas ele acaba criando um monstro e aquilo foge de seu controle. Hoje, não há muitas considerações éticas na ciência. No artigo, falo da questão do H1N1. Houve uma epidemia, e o Ministério da Saúde declarou que aquela era uma situação de calamidade e que era preciso fazer alguma coisa para oferecer tratamento rápido. Um ano, porém, é muito pouco para se criar uma vacina. Provavelmente não houve muito critério. É importante que quem está se formando reflita: estou fazendo ciência para quem e para quê? Para ganhar dinheiro, ficar famoso e ganhar prêmios?
 
Na sua avaliação, a ficção científica tem cumprido seu papel de colaborar com a discussão ética acerca das possíveis consequências sociais, políticas e psicológicas do desenvolvimento técnico-científico?
Nas ficções mais antigas, sim, mas não consigo ver isso nas atuais. As obras mais recentes abordam técnicas ou tecnologias que podemos desenvolver, mas acho que hoje em dia não trazem muito a discussão ética.
 
Temas como reprodução assistida e manipulação genética ainda causam polêmica. Que contribuição Admirável Mundo Novo dá a esse debate na sociedade contemporânea?
No Admirável Mundo Novo, o processo de fertilização acontecia da mesma forma que é feito hoje. O autor o descreve perfeitamente. Inclusive as salas – no livro, a sala de fecundação é fria, as pessoas usam luvas de borracha – são exatamente iguais a um laboratório que vemos hoje nessas clínicas. Na obra, as pessoas das castas mais baixas vão ser baixas, atarracadas, não precisam ser altas, desenvolvidas, não precisam ser bonitas, pois elas fariam apenas os trabalhos braçais, como ligar e desligar máquinas. O diretor de incubação tinha o poder de interferir nas caraterísticas das pessoas, ou melhor, produtos humanos. Isso choca. E é o que estamos vendo hoje: os pais estão escolhendo as características dos filhos.
 
Você observa que diversas das tecnologias imaginadas por Huxley já foram desenvolvidas. Já estamos vivendo uma espécie de Admirável Mundo Novo?
A conclusão a que cheguei é que já chegamos no Admirável Mundo Novo. As máquinas dominam, e o poder do Estado é irrestrito em determinados momentos. Praticamente todas as técnicas que o autor descreveu já existem e estamos descobrindo coisas nas quais ele nem pensou. A sociedade do Admirável Mundo Novo reflete a nossa sociedade de hoje, até mesmo na questão das castas. Existe mobilidade social mas é muito difícil alcançá-la.
 
É possível evitar trilhar o caminho da sociedade descrita no livro?
Existem vários trabalhos que falam que o livro do Huxley é bastante pessimista. Quando você acaba de ler, questiona-se: vivemos nessa sociedade e não temos como fugir? Hoje temos, sim, como fugir. Nosso trabalho deveria ser o de tentar desfazer isso e construir uma sociedade melhor. É um trabalho muito difícil. As pessoas que não querem um emprego formal são consideradas esquisitas na sociedade. Quando fui fazer essa monografia, as pessoas questionavam o tema. Nossa função é tentar fugir disso (do modelo apresentado no livro) ao máximo. Mas é inegável que grande parte dos avanços científicos e tecnológicos são excelentes. Não acho que o desenvolvimento científico tenha que parar, mas é preciso ter a noção de que estamos tratando de vidas humanas, e não de produtos.
 
Você aponta que na contemporaneidade os meios de comunicação de massa desempenham função de dominação função semelhante à hipnopedia no livro. A emergência da internet e das redes sociais e a consequente descentralização da comunicação não invertem essa corrente?
Acho que sim. Esse site de relacionamento que está sendo utilizado para mobilizar muita gente para as manifestações é algo fantástico. Mas, ao mesmo tempo em que as pessoas estão conseguindo usar essas ferramentas para coisas interessantes, há um lado obscuro. É o do consumo exacerbado, incentivado mesmo nas redes sociais, em que as pessoas exibem os produtos que compraram ou são expostas a propagandas de diversas marcas. Não fugimos muito da frase do Guy Debord: “o que é bom aparece, o que aparece é bom”. Muita gente foi àquela manifestação de um milhão de pessoas influenciada por isto: está na moda ir às manifestações.